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domingo, 3 de julho de 2011

Ana Jácomo

"Minha mãe, pra mim, é sol mesmo quando chove. É chuva, com direito a cheiro de terra molhada do quintal lá de casa, quando tudo fica árido. Silêncio capaz de amansar ruídos que eu não sei como fazer dormir. Voz que me ajuda a acordar esperanças quando elas ficam com preguiça de levantar. Uma presença que sabe acender o meu ânimo quando o breu se esparrama. Primavera para o meu olhar, não importa qual seja a minha estação. Um perfume inigualável. Ela e as coisas todas do mundo dela. Quando chega, traz lembranças minhas que apenas ela reflete e apenas eu consigo ver. Uma espécie de poema que o sentimento lê em voz alta somente para dentro.

Minha mãe foi a primeira música que tocou no meu rádio. A primeira paisagem. A primeira pessoa que me falou sobre milagres e, sem palavra alguma, me contou sobre Deus. Uma história de amor. Tanto faz se, às vezes, desconcertado. Tanto faz se, às vezes, atrapalhado pela mistura das coisas que são dela e das coisas que são minhas. Tanto faz se aprendendo a amar junto comigo nesses bancos da escola. Tem vez que a gente demora para resolver alguns exercícios mais complicados, mas a amizade que nos liga e construímos, página a página, sempre nos orienta na busca das respostas. Minha mãe é maciez pra minha alma quando a vida se faz áspera e quando não. Um lugar de conforto, onde eu posso ser. Amor, quando as minhas folhas caem e quando floresço. A mesa sempre posta, até quando sinto fome apenas de lembrar quem sou.

Estou convencida de que ninguém me conhece melhor do que ela. Sente a emoção da vez, antes da minha voz. Sente quando omito alguma coisa, por mais sofisticados que sejam os meus disfarces. Sente a atmosfera da minhas palavras, antes que eu consiga ou resolva dizê-las. Conhece mais variações de sorrisos, silêncios e olhares meus e suas respectivas mensagens do que suponho mostrar. Ela não me conhece assim porque é versada em psicologia. Minha mãe é versada em mim, desde quando eu ainda nem era eu direito.

Parece ser especialista em previsões climáticas. Chove, quando não lembro do chapéu e ela diz pra eu não esquecer. Faz um frio absurdo, de repente, quando não levo o casaco e ela diz pra eu levar. Geralmente costuma doer quando alerta que vou me machucar e eu não ligo. Ah, sim, um bocado de vezes também exagera, erra na medida, lê seu oráculo de cabeça pra baixo e com lente de aumento, seja lá por falha intuitiva ou conveniência de seus receios maternos. Mas a verdade é que mãe parece mesmo ter um olhar diferente. Capaz de ver coisas que quaisquer outros olhos do mundo não sabem enxergar. Nem os nossos.

Minha mãe cantou para me fazer adormecer. Ensinou-me, com toda a paciência, a rezar para o meu anjo da guarda antes de eu dormir e de levantar da cama. Ensinou-me a respeitar o espaço das pessoas, a ser educada com gente de toda idade, a ser cuidadosa com as plantas e os bichos, a não me apropriar de nada que não me pertencesse. De mãos dadas, seguíamos pelas ruas e seguir de mãos dadas com ela pelas ruas era uma espécie de festa que acontecia toda manhã. Encapava meus cadernos. Perguntava o que havia acontecido na escola quando percebia que eu havia chorado, mas não contava para ela. De vez em quando, me surpreendia com meus lanches preferidos enquanto eu assistia "Sessão da Tarde": bolo "Ana Maria", mingau de cremogema, bolinhos de chuva.

Minha mãe costumava cantarolar, lá na cozinha, enquanto preparava o almoço. Nunca soube se era também por isso que a comida ficava tão gostosa e tinha um cheiro que eu não encontro em nenhum outro lugar. Costurava até altas horas da noite, fazia tricô, jogos de ráfia, enxoval para bebê, para ajudar o meu pai com as despesas, eu ficava por perto, ouvindo música, escrevendo meus versos. No início da adolescência, desconcertada, me falou, do jeito dela, sobre novidades que não sabia como me explicar. E quando eu sentia cólicas terríveis, lá estava ela, com seu chá de erva-cidreira e as toalhinhas quentes que passava a ferro para pôr sobre a minha barriga. Às vezes é preciso que o mundo dê algumas voltas e a gente amadureça um pouco para ser capaz de leituras mais amorosas sobre um bocado de coisas. Leituras com braços e coração mais abertos.

Nos meus tempos de conga azul, cadernos com decalque, canetinhas silvapen, merendeira com lanche Mirabel, lá pelos sete anos de idade, no início daquilo que chamavam de “primário”, eu escrevia frases curtas que me pareciam enormes, recém-alfabetizada que era. Vocabulário restrito, para falar sobre a minha mãe, escrevi várias vezes tudo o que eu podia: “Minha mãe é bonita”. Atualmente, tenho muito mais do que sete anos e, ao longo das décadas, aprendi a escrever frases mais elaboradas, mas esta continua sendo perfeita. Para os meus olhos, as belezas que ela tem são ainda maiores, bem maiores, agora, olhando daqui."




Doces & Sonhos

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